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Clarissa Dalloway, a protagonista do romance "Mrs. Dalloway", de Virginia Woolf, está na floricultura, escolhendo as flores para a festa que dará naquela noite.
"Mrs. Dalloway disse que ela mesma iria comprar as flores" se tornou, contra todas as previsões, uma das frases iniciais mais conhecidas e transformadoras do romance do século 20.
De repente, de dentro da loja, ouve-se um "estampido lá fora". "Cruzes, esses carros", diz a vendedora, e as duas saem até a porta para ver o que é. É realmente "um automóvel que se aproximava da calçada" e, dentro dele, num rápido vislumbre por uma cortininha que se abre e já se fecha, talvez esteja a rainha.
A rua inteira estaca, e os pedestres se questionam quem estará lá dentro. Entre eles, além de Clarissa, está Septimus Warren Smith, seu antônimo e sinônimo no romance. Esta será a única vez em que os dois estarão fisicamente próximos. Casualmente, na rua. Eles nunca mais se encontrarão.
A partir dessa primeira aproximação —em que os personagens são apresentados numa cena trivial— Woolf começa a tecer as redes que formam este romance que, em 2025, completa cem anos de publicação. Como se os caminhos de Clarissa pelas ruas de Londres —e em sua casa— fossem, na verdade, uma teia.
Cada frase é um fio invisível que se arma sobre a anterior e a seguinte, escondendo tramas e armadilhas enrodilhadas, até chegar à teia de outro personagem. Um se liga a outro e a outro, até finalmente atingir o oposto de Clarissa: Septimus. Ela, uma dama da alta sociedade que organiza festas disputadas. Ele, um ex-herói de guerra, traumatizado e com pensamentos suicidas.
É principalmente pela via do fluxo de consciência que ambos se cruzam. Numa armação em que autora, narradora e personagens se confundem, Woolf deixa entrever sua voz nas palavras de Clarissa e toda a tragédia da guerra na melancolia de Septimus.
A exploração do fluxo de consciência proporciona ao leitor a percepção da multiplicidade de sentidos que cada frase possui. Clarissa fala do vestido, das flores e dos castiçais, mas cada uma dessas coisas aparentemente fúteis oculta uma frustração e uma melancolia distantes, mas presentes.
Nas falas de cada um —Clarissa, Septimus, Rezia, Peter, Sally— narradora e personagens se mesclam de tal forma que muitas vezes não se sabe quem diz o quê. É o disc urso indireto livre revelando as crises psíquicas e existenciais da autora e fazendo o leitor se sentir emboscado pelos pensamentos, como se chamado, também ele, a se questionar.
A narradora apresenta uma cena em terceira pessoa —Peter conversando com Clarissa, Rezia e Septimus no psiquiatra, Richard num almoço com uma aristocrata— e, como se do nada, o texto muda sutilmente o foco narrativo e o tempo verbal. A leitura dá um salto para dentro da mente inquieta de cada personagem.
Como se uma urdidura social fosse deixando fiapos pelos caminhos, fiapos que vão sendo capturados pelos personagens —e por nós. Cada um costura um nó que, ao final, acaba criando uma grande tapeçaria.
Dessa forma, a alta sociedade inglesa do início do século 20 se revela em sua rigidez e preconceitos. A escolha por um casamento de conveniência revela sua fragilidade. A homossexualidade enrustida demonstra ainda sua força.
A miséria de Septimus, mesmo que indiretamente, atinge Clarissa em sua festa. A cena inicial do romance —todos parados tentando adivinhar o passageiro do carro misterioso— faz mais sentido quando chegamos ao final. Pessoas de classes e circunstâncias tão diferentes, que nunca se encontraram, estão misteriosamente ligadas pelo fio de uma melancolia que nos envolve a todos.
Quem, afinal, sabe o caminho certo? Quem, afinal, sabe os porquês da vida que levou e da vida que leva?
Virginia Woolf, cem anos depois da publicação de "Mrs. Dalloway", continua nos fazendo repetir essas perguntas. Um romance cujas palavras parecem fazer mais sentido a cada releitura, feliz e infelizmente atuais.