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Keigo Higashino é um escritor de ofício. Com quase uma centena de livros publicados e prêmios acumulados na estante, suas obras foram adaptadas para o cinema e transformadas em mangás e animes.
Trata-se da típica abordagem caleidoscópica multimídia japonesa, que evoca um antigo provérbio politicamente incorreto dos tempos do xogunato: os camponeses são como sementes de gergelim —esprema além do limite, pois é sempre possível extrair uma gota a mais.
No disputado e autossuficiente mercado nipônico, Higashino conseguiu a prodigiosa façanha de manter nas livrarias seções inteiras consagradas ao seu catálogo. Não bastasse, ainda triparte sua produção em contos, romances e séries policiais.
Escrever um bom romance de detetive é seguir uma receita de bolo. Isso não desmerece o gênero, tão menosprezado no passado —pelo contrário. Destacar-se quando existe um conjunto comum de regras a ser obedecido talvez seja mais desafiador do que quando há liberdade criativa irrestrita.
A adesão a uma cartilha específica é, aliás, algo estabelecido há séculos na poesia japonesa, dos clássicos renga e waka cortesãos aos populares senryu e haicai, este imortalizado na figura de Matsuo Basho.
"A Devoção do Suspeito X" é o segundo romance de Higashino lançado no Brasil. Em "Cartas", publicado em 2020, o autor examinava o comportamento da sociedade japonesa diante dos criminosos, um sistema que extrapola a punição individual para condenar ao ostracismo quaisquer pessoas, consanguíneas ou não, com vínculos com o contraventor.
A nova publicação narra a história de Yasuko Hanaoka, uma mãe solteira de meia-idade que trocou a profissão de hostess em clubes noturnos em Tóquio pela função de atendente em uma loja de refeições prontas bentô. Uma rotina previsível até o surgimento de Shinji Togashi, seu abusivo ex-marido que, após sofrer os reveses da vida, agora quer extorqui-la.
Os ânimos se inflamam e, num ímpeto bilioso, mãe e filha assassinam o chantageador. Seria um beco sem saída se não fosse o surgimento de um discreto vizinho, o deus-ex-machina Tetsuya Ishigami, brilhante professor de matemática que oferece seus serviços para ocultar o corpo e confundir os avanços dos homens da lei.
Ao revelar os culpados nas páginas iniciais, o enredo trata então da investigação policial. O detetive encarregado, Shunpei Kusanagi, conta com o valioso auxílio de Manabu Yukawa, renomado físico cujos insights norteiam a trama —ele é a versão nipônica do corpulento e excêntrico Nero Wolfe, protagonista indispensável dos romances do escritor americano Rex Stout.
Ao acompanhar esse jogo de gato e rato, o leitor se descobre partidário das criminosas, talvez por sua falta de iniciativa e subserviência às figuras masculinas, que as manipulam por motivos egoístas não muito distintos daqueles do ex-marido morto.
Por outro lado, chama a atenção a devoção do personagem Ishigami à sua causa —inocentar a vizinha—, de um platonismo excessivo, porém revelador de alguns mecanismos amorosos japoneses, em que valores como honra e comprometimento equivalem ao afeto puro e simples.
"A Devoção do Suspeito X" pode, nesse sentido, ser considerado um livro sobre escolhas e a responsabilidade de assumir as consequências que decorrem delas. Um conceito, diga-se, em ampla conformidade com ensinamentos pregados pelo budismo. Afinal, como afirma o próprio narrador, na sociedade não há engrenagens inúteis, e são elas próprias que decidem seu papel.
Fonte:Folha