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A falha do mecanicismo marxista e a ética da paz kantiana inspiram um novo sindicalismo, crucial para superar as antinomias proletárias e unificar a representação dos trabalhadores.
A busca por uma sociedade universal de paz, um ideal que atravessou séculos, desde as aspirações iluministas até as propostas marxistas, tem enfrentado inúmeros desafios. Enquanto a visão mecanicista da História, que previa um movimento ascendente inevitável, falhou em seus intentos, a força ética da reconciliação humana e com a natureza permanece como um imperativo crucial.
Essa necessidade de paz e fraternidade, tão cara a pensadores como Immanuel Kant, ressurge hoje como um farol para repensar não apenas as relações entre nações, mas também as dinâmicas internas do mundo do trabalho.
Em um contexto de profunda transformação e fragmentação das categorias profissionais, a analogia kantiana oferece um caminho para um novo sindicalismo, capaz de enfrentar as complexas antinomias proletárias, conforme a análise do jurista Tarso Genro em artigo de opinião.
A Paz de Kant e o Legado Ético para a Sociedade
A ideia marxista-mecanicista de que a História seguiria um movimento ascendente, culminando em uma sociedade universal de paz, não se concretizou. No entanto, o ideal ético da reconciliação entre os seres humanos e com a natureza, presente nas Revoluções Francesa e Americana, persiste. Kant, que antecedeu Marx na história das ideias, já afirmava que sem o imperativo categórico da paz entre as nações, a fraternidade seria inatingível, como destaca Tarso Genro.
É nesse cenário que a agenda de um sujeito coletivo democrático* ganha renovada importância. Esse sujeito seria capaz de comandar uma revisão da proposta republicana, que, segundo Genro, faleceu junto com o projeto revolucionário da Revolução Russa, marcada por tragédias como os "processos de Moscou", que resultaram no fuzilamento de grande parte de seus dirigentes.
A nova ideia de República democrática não exige a renúncia a Marx, mas busca propor uma paz possível por dentro de uma igualdade justa. O imperativo categórico da necessidade da paz mundial, dotada dos valores de fraternidade entre os povos, foi desenhado por Kant como uma via generosa, mesmo que suas possibilidades, refletidas em organismos internacionais muitas vezes impotentes, ainda representem um caminho utópico, porém concreto, para a igualdade entre as nações.
O Perigo do Totalitarismo e a Fragilidade Sindical
As relações de vizinhança necessárias entre os povos na "Paz Perpétua" kantiana, reguladas por uma ética de solidariedade consciente, encontram similaridade na convivência de diferentes profissões nas fábricas. Essa situação se agravou nos últimos 50 anos, alterando as configurações do contrato laboral e os fundamentos do direito coletivo do trabalho, conforme a análise de Tarso Genro.
Um modo fascista de governar, segundo o jurista, pode se apoiar na baixa capacidade de representação sindical do trabalho proletário, ou em sua tendência puramente economicista. Isso acaba por separar as "elites" operárias dos problemas mais relevantes, fragmentando a identidade da classe e impedindo que ela compreenda o sentido democrático e republicano universal.
No século passado, juristas do nazismo, como Carl Schmitt e Karl Larenz, representaram um contraponto ao idealismo kantiano. Schmitt defendia que o führer deveria "comandar o Direito", organizando responsabilidades civis e políticas em nome do povo, através de uma ditadura. Larenz, por sua vez, estabeleceu um vínculo do Direito Civil com um direito constitucional totalitário, legitimando os deveres de obediência dos súditos ao Estado ditatorial nazista, segundo Tarso Genro.
Antinomias Proletárias: A Fragmentação do Trabalho Moderno
Os tempos atuais aceleram a integração dos processos de produção, com a colaboração horizontal entre empresas de diferentes categorias econômicas, o que reduz substancialmente a importância do sindicalismo organizado. As diferentes profissões, instaladas ao lado da categoria profissional originária, perturbam essa organização, relata Tarso Genro.
As mudanças tecnológicas e a redução da importância do trabalho vivo na fábrica moderna alocaram diversos tipos de serviços em seu interior. Estes serviços, sejam operacionais, auxiliares ou intermitentes, são essenciais para a produção, mas criam uma rede complexa de oferta de distintas forças de trabalho, de diferentes profissões.
A realidade política do sindicalismo tradicional não mais representa integralmente essa complexidade. Os espaços das categorias originárias se restringem, gerando antinomias específicas dentro do mundo laboral e no direito coletivo do trabalho. Esse cenário restringe a representação sindical, que muitas vezes se exime de proteger esses novos prestadores de serviço.
Uma antinomia muito específica, em termos formais e materiais, convive com o sindicalismo atuante, por exemplo, em uma fábrica metalúrgica. Há um painel de profissionais "secundários", como os de limpeza, terceirizados em geral, TI, segurança, treinamento e publicidade, cujas demandas não são representadas pelos sindicatos da categoria predominante no "chão de fábrica", conforme Tarso Genro.
Essa situação de exploração e segregação de parte da força de trabalho, marginalizada de uma representação sindical potente, pode servir de base social para uma "revolução" fascista pós-moderna. A lealdade subjetiva à norma que refere à unidade grupal, ou social, pode inspirar um novo regime jurídico, que sob a consigna de uma nação "acima de todos", unifique os trabalhadores em nome da "pátria" (acima de tudo), estribada em um direito aparentemente democrático liberal funcional, mas que sustenta um regime xenófobo e militarista, em uma democracia ilusória, alerta Tarso Genro.
A Visão de um Novo Sindicalismo Unificador
Nesta nova totalidade complexa, o conjunto de direitos e faculdades que correspondem ao sindicato permite falar de uma liberdade sindical coletiva em seus termos organizativos tradicionais. No entanto, também permite referir as novas formas de liberdade coletiva de atuação para unificar, no âmbito da empresa, as distintas profissões diferenciadas, que estão fracamente vinculadas à categoria profissional principal e, por isso, sempre excluídas das negociações dominantes.
Um novo sindicalismo pode emergir desta crise das antinomias proletárias, conforme António Baylos. Ele sugere que a dimensão coletiva da liberdade sindical, como conjunto de direitos e faculdades correspondentes ao sindicato, pode ser reformulada e ampliada para gerar uma liberdade coletiva de atuação política e juridicamente unificada.
A "vizinhança" da fala de Kant em seu projeto de "Paz Perpétua", obrigatória entre os povos pela "esfericidade da terra", é a mesma vizinhança que se dá entre as categorias de trabalhadores na espacialidade da fábrica. O impulso à solidariedade para alcançar a paz, freando a "liberdade selvagem" e transformando as vizinhanças entre as nações em solidariedade contra as guerras, segundo Kant, deveria ser substituído pela ideia moral da paz como imperativo categórico.
Essa moderação kantiana, que se processa entre os povos vizinhos, pode ser analogicamente coerente para visualizar uma colaboração unitária entre categorias distintas de trabalhadores na mesma unidade de produção. O objetivo seria que eles fossem representados unitariamente na mesma instituição sindical.
A tradição de Kant também se reflete em iniciativas contemporâneas. Tarso Genro menciona o livro "Uma Proposta de Reinvenção da ONU", coordenado pelo sandinista Padre Miguel d’Escoto Brockmann, com participação de Leonardo Boff, quando d’Escoto foi presidente da Assembleia Geral da ONU (2008-2009). A obra, cujo prólogo foi escrito por Ramsey Clark, um jurista que denunciou violações de soberania por seu próprio governo, está alinhada com a busca kantiana por uma ordem internacional justa, mostrando que as ideias só operam na vida real quando a "coruja de Minerva alça seu voo".
O livro "A Paz Perpétua", publicado em 1795 sob a consigna iluminista de Kant, "o céu estrelado acima de mim e a Lei Moral dentro de mim", buscava fundar a paz internacional na sedução da razão. Em contraste, Karl Larenz, o civilista do nazismo, buscava a paz social interna através do conceito de "boa-fé objetiva", assentada no Direito positivo, reservando os lugares de cada classe, raça e cultura religiosa, adequando os indivíduos à observância do sistema jurídico interno da nação, conforme Tarso Genro.
Fonte: Conjur