Kazuo Ishiguro testa limites da memória em primeiro livro – 16/05/2025 – Ilustrada

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Publicado em 1982, "Uma Visão Pálida das Colinas" foi a estreia de Kazuo Ishiguro, então com apenas 27 anos. O autor que em 1997 receberia o Prêmio Nobel de Literatura, já nesse primeiro romance —agora adaptado para o cinema por Kei Ishikawa, com estreia nesta edição do Festival de Cannes— revela uma escrita de aparência contida, mas que tensiona continuamente os limites entre lembrança e invenção.

Sua prosa, marcada por lacunas, silêncios e deslocamentos, constrói-se sobre aquilo que não pode ser inteiramente articulado.

Narrado por Etsuko, uma mulher japonesa vivendo na Inglaterra, o livro acompanha sua tentativa de lidar com o suicídio da filha mais velha, Keiko. Resta Niki, a filha mais nova, nascida de seu segundo casamento com um britânico.

"Por fim, entramos em acordo que seria Niki, achando que tinha um vago toque oriental", recorda a mãe logo na abertura —frase que já insinua o esforço de habitar um espaço diaspórico. O vínculo rarefeito entre as duas irmãs —Keiko, a "pura" japonesa, e Niki, de nome híbrido— encarna não apenas as tensões familiares, mas também os impasses entre identidade, pertença e assimilação.

O luto conduz Etsuko a uma série de lembranças de um verão no pós-guerra, em Nagasaki, quando buscava reconstruir a vida em meio aos destroços da cidade. "Durante o ano todo havia crateras com água estagnada. E nos meses de verão os mosquitos eram intoleráveis."

É nesse ambiente devastado e insalubre que Etsuko contempla, com delicada atenção, um chalé antigo que resistiu tanto à bomba quanto às forças modernizantes da reconstrução —metáfora talvez não tão sutil mas eficiente para indicar a tensão entre o apagamento da tradição e a necessidade sobrevivência que atravessa o romance.

Nesse contexto, surge a figura enigmática de Sachiko, mulher à margem, que vivia em Nagasaki com a filha Mariko numa casa decadente, esperando que se materializem as promessas de um homem americano.

Aos poucos, essa personagem adquire contornos inquietantemente espelhados à própria Etsuko, que vive quase sempre na redoma de sua casa britânica, sem desejo ou coragem de explorar mais o novo país. A narrativa se desdobra em zonas de sombra, onde relações ambíguas e memórias pouco confiáveis desafiam a leitura literal.

O estilo de Ishiguro permite questionar a confiabilidade da narradora, sugerindo que figuras como Sachiko, e talvez Mariko, sejam projeções deslocadas da experiência emocional da própria Etsuko. Essa ambiguidade narrativa, que dissolve fronteiras entre lembrança, narração e invenção, será explorada de forma mais elaborada em romances posteriores do autor.

Por exemplo, em "Vestígios do Dia", de 1989, em que a memória do narrador revela gradualmente uma realidade mais complexa, obstruída por negação e arrependimento. Ou ainda o romance "Não me Abandone Jamais", de 2005, em que Ishiguro, por meio das memórias da cuidadora Kathy, constrói uma realidade radicalmente cruel e melancólica que, embora apresentada com o realismo de quem a viveu, é obscurecida pela aceitação de sua própria crueldade.

"Uma Visão Pálida das Colinas" se inscreve num momento em que ainda era incômodo associar experiências individuais de migração à noção de uma "diáspora japonesa" mais ampla. Aqui, a diáspora não se apresenta propriamente como rede ou comunidade, mas como fissura íntima: o que resta para cada uma dessas mulheres quando o pertencimento pleno a um país já não é possível?

Ao conduzir o leitor entre uma Inglaterra miniaturizada e o Japão, cujas bordas se confundem com a memória da narradora, o livro foi importante não apenas por revelar seu talento, mas por situar o jovem Ishiguro na cena literária como uma voz narrativa deslocada e singular.

Pela escrita seca, mas emocionalmente densa, que o leitor brasileiro encontrará no livro, ele antecipa os temas centrais de sua obra posterior: a fragilidade da verdade, a dissimulação da dor, e a dignidade discreta dos que sobrevivem sem esquecer.



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