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Cientistas desvendam o 'ponto de não retorno' cerebral, mostrando que lutar contra o sono tem um limite exato e abrindo portas para novos tratamentos.
O sono, um dos processos mais básicos e fundamentais da vida, ocupa cerca de um terço da nossa existência. Apesar de a neurociência conhecer diversos aspectos desse fenômeno, como o cérebro transita da vigília para o sono era um mistério.
Agora, um estudo inovador pode ter, finalmente, resolvido essa questão. Pesquisadores do UK Dementia Research Institute, no Imperial College London, e da Universidade de Surrey, na Inglaterra, revelaram que não adormecemos aos poucos, mas sim em um momento crítico e específico.
Essa descoberta redefine a compreensão do processo de adormecer, oferecendo novas perspectivas para a segurança no trânsito, o diagnóstico de insônia e a saúde cerebral em geral, conforme informações divulgadas pela CNN Brasil.
A Descoberta do “Ponto de Não Retorno”
Contrariando a visão tradicional de que o sono se instala gradualmente, o novo estudo, publicado na revista Nature Neuroscience, indica uma transição abrupta. Há um ponto de inflexão cerebral previsível que ocorre cerca de 4,5 minutos antes de, de fato, se adormecer.
Esse "ponto de não retorno" é quando o cérebro atinge um estado do qual não há mais volta para a vigília. Antes dele, é possível lutar contra o sono e voltar ao estado de alerta, mas depois, o sistema de vigília colapsa para o estado de sono.
O líder do estudo, Nir Grossman, do Imperial College, resumiu a descoberta: "Descobrimos que adormecer é um processo de bifurcação, não gradual, com um ponto de inflexão claro que pode ser previsto em tempo real".
Como o Cérebro Decide Adormecer
Para mapear esse caminho até o sono, os pesquisadores analisaram eletroencefalogramas (EEGs) de mais de mil pessoas. Eles extraíram 47 medidas diferentes, reunindo-as em um mapa matemático, uma espécie de "GPS do sono", que localiza o cérebro na trajetória entre acordado e dormindo.
Essa medida, chamada de "distância do sono", permanece estável antes de cair abruptamente, descrevendo o momento em que o estado de vigília deixa de existir. Os autores usaram o termo matemático "bifurcação" para esse colapso súbito.
Geraldo Lorenzi, professor da Universidade de São Paulo (USP) e especialista em Medicina do Sono, explica que, enquanto acordados, as ondas cerebrais são rápidas, pois os neurônios estão ativos. Adormecer, ou ter sonolência, é basicamente lentificar essas ondas cerebrais. Ele valida a experiência comum: "A gente sempre tem essa fase do 'lusco-fusco', fica meio acordado, meio dormindo, que pode acontecer em várias situações. Mas, de repente, você pega no sono".
Precisão e Aplicações Práticas da Pesquisa
A pesquisa alcançou um nível impressionante de precisão, prevendo a progressão para o sono em noites seguintes com 95% de acurácia, segundo a segundo. Mais notável ainda, a previsão do momento exato do ponto de inflexão ocorreu com uma margem de erro de apenas 49 segundos.
Essa precisão tem um impacto prático significativo. Por exemplo, no trânsito, dispositivos de alerta poderiam avisar motoristas segundos antes de adormecerem ao volante, potencialmente salvando vidas e prevenindo acidentes causados por quem não conseguiu lutar contra o sono.
Atualmente, a avaliação do sono é feita em "épocas" de 30 segundos, onde o predomínio de ondas rápidas indica vigília e o de ondas lentas, sono. O novo método, porém, identifica matematicamente o momento exato em que o cérebro passa do ponto sem retorno, oferecendo uma definição mais clara do momento de transição vigília-sono.
Insônia e Outros Horizontes na Saúde Cerebral
Para os milhões de pessoas que sofrem de insônia, o estudo entrega uma nova ferramenta diagnóstica objetiva e fisiologicamente precisa. O ponto de inflexão da bifurcação pode fornecer uma definição mais clara da transição vigília-sono do que os critérios atuais.
Lorenzi esclarece que na insônia, esse "ponto de virada" não ocorre porque "se você está muito preocupado com alguma coisa, está pilhado, muito estressado, você não se entrega para o sono. Então, predominam as ondas rápidas das atividades cerebrais de quem está pensando, e você não consegue fazer essa transição da vigília para o sono".
Além de ajudar a entender e tratar a insônia, a descoberta abre portas para o uso do ponto de inflexão como um biomarcador de saúde cerebral. Com distúrbios do sono cada vez mais associados a condições como demência e Alzheimer, compreender melhor a transição para o sono pode pavimentar o caminho para a prevenção e tratamentos mais eficazes para diversas doenças neurológicas.