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A Complexa Teia da Responsabilidade Penal de Administradores e Gestores de Fundos em Foco
A indústria de fundos de investimento no Brasil tem crescido exponencialmente, consolidando-se como um pilar fundamental da economia nacional. Em 2024, o setor registrou uma captação líquida impressionante de R$ 60,7 bilhões, com os fundos de investimento em direitos creditórios (FIDCs) acumulando quase R$ 1 trilhão em patrimônio até o início do último trimestre do ano corrente.
No entanto, essa pujança econômica vem sendo acompanhada por um desafio crescente: as recentes operações policiais que lançaram suspeitas sobre a utilização desses fundos pelo crime organizado. Há indícios de que o setor estaria sendo usado para ocultação de patrimônio oriundo de atividades ilícitas, como o tráfico de drogas e a comercialização de combustíveis adulterados, configurando potencial lavagem de dinheiro.
Diante desse cenário, a discussão sobre a responsabilidade penal de administradores e gestores de fundos se intensifica. A questão central é definir os limites dessa responsabilidade, seja por supostas falhas nos mecanismos de controle ou por uma alegada colaboração ativa, conforme análise das advogadas Vanessa Barossi e Mariana Távora, do escritório Ráo & Lago Advogados.
A Ascensão dos Fundos e as Sombras do Crime Organizado
A relevância dos fundos de investimento para a economia brasileira é inegável, com um volume financeiro que atrai olhares tanto do mercado legítimo quanto de atividades criminosas. As operações policiais recentes acenderam um alerta sobre a vulnerabilidade desses veículos financeiros à infiltração do crime organizado, especialmente para fins de lavagem de dinheiro.
Essa associação tem gerado uma atribuição, por vezes genérica, de responsabilidade aos administradores e gestores desses fundos. A sociedade e as autoridades buscam entender se esses profissionais teriam concorrido, por ação ou omissão, para as práticas delituosas que se desenrolam no ambiente dos fundos.
A legislação penal brasileira prevê a responsabilização por conduta ativa (comissão), omissão própria (descumprimento de dever legal para todos) e omissão imprópria (quando há um dever específico de agir para evitar um resultado, como um salva-vidas). A transposição dessas categorias para o universo dos fundos de investimento, contudo, exige uma análise minuciosa.
As Distintas Funções de Administradores e Gestores
Para compreender a responsabilidade penal, é crucial diferenciar os papéis do administrador e do gestor de fundos, que, embora complementares, possuem funções distintas. O administrador fiduciário é o guardião dos aspectos regulatórios do fundo.
Ele é responsável pela prestação de informações à Comissão de Valores Mobiliários (CVM), pela escrituração de ativos e pela supervisão dos prestadores de serviço. Já o gestor se concentra na alocação de recursos e nas decisões de investimento, sempre em conformidade com a política estabelecida no regulamento do fundo.
A responsabilidade penal é, por natureza, pessoal e subjetiva. Isso significa que a imputação de um crime não pode se basear unicamente no cargo ocupado, nem é possível transpor automaticamente a responsabilidade solidária administrativa para o âmbito penal. Se um gestor cometer crimes como ocultação de recursos ou fraude, ele será responsabilizado. O administrador, por sua vez, só responderá em conjunto se concorrer ativamente ou prestar auxílio, conforme o artigo 29 do Código Penal.
A Complexidade da Responsabilidade Penal por Omissão
A imputação por crime omissivo impróprio requer ainda mais cautela, especialmente para o administrador, cujos deveres de supervisão o afastam do dia a dia das operações de investimento. No sistema regulatório da CVM, o administrador tem obrigações legais, contratuais e fiduciárias, incluindo deveres de cuidado, diligência, lealdade e fiscalização.
Ele deve informar a autarquia sobre ocorrências ou indícios de violação da legislação e assegurar que as operações estejam em conformidade com os limites legais e contratuais. Como gatekeeper do mercado de capitais, seu papel é zelar pela legalidade e regularidade da atuação dos demais prestadores de serviço, incluindo o gestor.
Um administrador pode responder por omissão que resulte em crime se houver um dever de agir para evitar o resultado, conforme o artigo 13, §2º, do Código Penal. Esse dever pode derivar das normas da CVM, de obrigações estabelecidas pelo regulamento do fundo, ou da criação de risco por seu próprio comportamento que descumpriu deveres de cuidado.
Ainda assim, a responsabilização penal do administrador por omissão imprópria não é automática. É imprescindível verificar, caso a caso, se o administrador possuía meios concretos para evitar o resultado, se sua omissão foi determinante para o crime e se houve dolo ou culpa, conforme exigido pelo tipo penal.
O Princípio da Confiança e os Desafios da Fiscalização
Um fator importante é o “princípio da confiança”, que permite ao administrador delegar a gestão dos ativos a um terceiro, como o gestor, que é um profissional presumidamente capacitado e autorizado pela CVM. Essa delegação pressupõe um nível mínimo de confiança na atuação do gestor, reforçado pela dinâmica do mercado.
Embora o administrador mantenha a responsabilidade de supervisionar os atos do gestor, essa fiscalização não pode ser absoluta, para não inviabilizar a própria lógica da delegação e evitar a duplicação desnecessária de funções. As normas da CVM exigem que o administrador verifique se a atuação do gestor observa os parâmetros legais, regulamentares e contratuais.
Somente em caso de omissão culposa ou dolosa dessa supervisão mínima, o administrador poderá ser responsabilizado penalmente. Isso destaca a importância de uma fiscalização eficiente, mas também razoável e compatível com a estrutura de delegação de responsabilidades.
Conclusão: Análise Criteriosa e Individualizada
Diante da relevância e complexidade dos fundos de investimento, a responsabilidade penal de administradores e gestores de fundos deve ser analisada com extrema cautela e de forma individualizada. Não se trata de qualquer falha fiscalizatória, mas sim de condutas concretas que demonstrem um dever jurídico de agir, capacidade efetiva de evitar o resultado e a presença de dolo ou culpa.
A investigação criminal deve focar na demonstração desses elementos para caracterizar o crime, garantindo que a responsabilização seja justa e proporcional à atuação de cada profissional. A clareza na distinção de papéis e a aplicação rigorosa dos princípios do Direito Penal são essenciais para evitar injustiças e manter a integridade do mercado financeiro.