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O uso de inteligência artificial no setor de delivery e suas implicações legais para consumidores e fornecedores
O Brasil possui um dos mercados de delivery de alimentos mais dinâmicos e robustos do mundo, com grandes plataformas como o iFood movimentando cerca de 110 milhões de pedidos mensais em 2024, segundo dados da Ecommerce Brasil. Neste cenário de alta competição e inovação, a tecnologia emerge como ferramenta fundamental para otimizar negócios.
Uma prática que tem ganhado destaque é a utilização de fotos geradas por inteligência artificial (IA) nos cardápios digitais. Essas imagens, muitas vezes “perfeitas”, são criadas para despertar maior interesse nos consumidores, mas levantam sérias questões sobre a veracidade da publicidade e os limites éticos do marketing digital.
Contudo, a IA também tem sido empregada de forma indevida por clientes que falsificam fotos para obter reembolsos fraudulentos. Este artigo explora as consequências jurídicas dessas práticas para ambos os lados, conforme análise de advogada especializada do Ribeiro e Cury Sociedade de Advogados.
O que o Código de Defesa do Consumidor (CDC) diz sobre a publicidade com IA
Quando fornecedores utilizam fotos de comida geradas por IA, eles podem estar violando direitos fundamentais dos consumidores. O Código de Defesa do Consumidor (CDC), em seu artigo 6º, inciso III, assegura ao consumidor o direito à informação adequada e clara sobre produtos e serviços.
Isso significa que o estabelecimento tem o dever de apresentar, de forma precisa, a quantidade, características, composição, qualidade e preço do produto. Se as imagens criadas por IA induzirem o consumidor a erro sobre as características reais do alimento, a prática pode ser considerada ilegal.
Além disso, se uma foto gerada por IA apresentar um prato de maneira irreal, exagerada ou muito diferente do que será entregue, pode configurar publicidade enganosa. O artigo 37, §1º do CDC proíbe expressamente este tipo de publicidade, que é caracterizada por qualquer informação falsa ou capaz de induzir o consumidor a erro sobre a natureza, qualidade ou preço do produto.
A discrepância entre a imagem exibida e o produto recebido compromete a boa-fé objetiva, fundamental nas relações de consumo. Para proteger-se contra essas práticas enganosas, o consumidor lesado tem garantido o direito de escolher entre as alternativas previstas no artigo 35 do CDC.
Entre as opções, estão exigir o cumprimento forçado da oferta, aceitar um produto ou serviço equivalente, ou rescindir o contrato com direito à restituição do valor pago, monetariamente atualizado, e a perdas e danos. Essas medidas visam garantir que o consumidor receba exatamente o que foi prometido ou seja justamente ressarcido.
Fraudes de clientes com IA: as consequências legais
Por outro lado, a utilização de inteligência artificial por parte de clientes para manipular fotos com o objetivo de obter reembolso indevido em plataformas de delivery também acarreta sérias consequências jurídicas. Essa conduta pode configurar infrações tanto na esfera penal quanto na cível.
A manipulação de imagens para simular defeitos ou vícios inexistentes nos alimentos, com a clara intenção de obter vantagem ilícita em prejuízo do fornecedor, preenche a tipicidade penal do crime de estelionato. Este crime é previsto no artigo 171 do Código Penal, com pena de reclusão de um a cinco anos e multa.
Além das implicações penais, o cliente que pratica tal fraude pode ser responsabilizado civilmente pelos prejuízos causados à empresa de delivery e aos restaurantes. Isso implica na obrigação de indenizar os danos materiais e morais resultantes do ato fraudulento, reforçando a seriedade da má-fé.
O posicionamento do iFood e dos órgãos regulamentadores
Diante do debate sobre o uso de fotos geradas por IA no setor de delivery, o iFood já se manifestou. A plataforma orienta seus parceiros a empregarem IA apenas se as imagens representarem o produto de forma coerente, visando garantir uma boa experiência ao cliente e preservar a confiança.
O iFood ressalta que todos os parceiros devem seguir as normas de seus Termos e Condições, que incluem orientações claras sobre a apresentação dos itens no cardápio, além do respeito à legislação vigente. A plataforma também conta com a colaboração dos usuários, que podem relatar inconsistências diretamente pelo aplicativo.
As denúncias são apuradas e as sanções aos estabelecimentos podem variar desde advertências até a exclusão da plataforma, dependendo da gravidade do caso. Este mecanismo de feedback é crucial para manter a integridade do serviço e proteger os consumidores.
Em um âmbito regulatório mais amplo, a publicidade e a veracidade das informações são regidas também pelo Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar). O artigo 27, §2º do Código Brasileiro de Autorregulamentação Publicitária estipula que os anúncios não devem conter informações, em texto ou apresentação visual, que possam induzir o consumidor a erro ou engano sobre a natureza, procedência, composição ou finalidade do produto.
O Procon-SP, por sua vez, orienta que o consumidor, ao identificar uma inconsistência, deve primeiramente formalizar a queixa com o estabelecimento. Caso a questão não seja resolvida, é possível abrir uma reclamação no site do Procon da sua cidade ou estado, buscando a intervenção do órgão de defesa do consumidor.
Transparência e boa-fé: a chave para o futuro do delivery com IA
O problema central no uso de fotos geradas por IA no setor de delivery não reside na tecnologia em si, mas na potencial falta de transparência entre a promessa visual e a realidade do produto. Bares e restaurantes assumem a responsabilidade civil pela frustração da expectativa do cliente ao veicular imagens não fidedignas, sujeitando-se às opções de reparação e compensação previstas no artigo 35 do CDC.
Por outro lado, o uso de softwares de IA por clientes para manipular fotos e obter reembolso indevido representa uma vantagem ilícita, caracterizando estelionato. Diante desse cenário dual de responsabilidade, é fundamental que as plataformas atualizem seus Termos e Condições de Uso, prevendo expressamente que essas condutas podem resultar em sanções administrativas, como o banimento e o bloqueio de contas.
Ademais, a comunicação desses atos fraudulentos às autoridades competentes é crucial para a aplicação das consequências jurídicas cabíveis, protegendo assim a integridade do setor de delivery de alimentos. Em suma, a regulação desse mercado depende da coerência no uso das tecnologias e do princípio da boa-fé objetiva, garantindo que fornecedores e consumidores atuem em conformidade com o ordenamento jurídico.